A Corrida

Parte III

- Eu sei, eu já sabia. Ninguém nunca fica, não comigo.
- Claro! – exclama ironicamente.
- Viu! É exatamente este o problema! Não consegue levar a sério o que acabei de falar, acha que é só mais alguma enganação, uma dramatização exagerada de algo que é inteiramente insignificante. Mas não é, nunca é! A própria confiança que se faz necessária nesses momentos, me destrói por anular tudo aquilo que digo, só porque o digo com tanta calma.
- Mas é dramático! É toda a complicação do simples que tanto repugna. E sua confiança não deixa de parecer um reflexo disso, do completo compreender dessa complicação. O seu próprio correr parece uma farsa!
- Mas não é, e não sei mais o que poderia fazer.
- Mas se não tem a mínima idéia de onde está, ou se há mais alguém nessa corrida, se estes estão na frente ou atrás, ou invisíveis ao seu lado por correrem de uma forma diferente. Se está cansado e sua mente está tão perdida que não pára de oscilar sem parar por diferentes humores. Talvez não seria a corrida uma completa farsa? Mais uma ilusão do que uma conclusão!
- Não, não... Porque a corrida não é só isso! Posso não saber se avancei de posição, mas sei que avancei como corredor; isso não foi só mais uma ilusão. Meus diferentes modos de correr podem não ter me ajudado em nada a chegar ao fim definitivo desta corrida, mas me modificaram de alguma forma, contribuindo do mesmo jeito para seu eventual alcance. Já que talvez estes modos não tenham sido só testes a que me impus para achar a melhor forma de avançar, mas sim, reais etapas da corrida que já haveriam de ser completas antes mesmo de eu pensá-las como tais. Etapas, cada uma com seu próprio início, seu próprio fim e com um objetivo a ser atingido para dela sair. Pois, talvez esta corrida não seja só uma com um percurso homogêneo e imutável, mas sim, uma múltipla, com milhares de diferentes etapas pelo caminho. Etapas que nem necessariamente precisam ser ultrapassadas uma atrás da outra, mas que podem também ser paralelas. Etapas, enfim, que pedem cada uma, um modo diferente de correr. Modo que é refinado por cada nova ultrapassada. Modo que avança, me fazendo avançar na corrida, mesmo não me fazendo avançar de lugar. Já que, nesse esquema, talvez este nada que nos cerca, não seja mais que uma fase dessas etapas. Um grupo de etapas onde o arredor se faz infinitamente branco e vazio, por assim precisar ser.
- Mas como essas etapas te modificam? Como as reconhece?
- Pela quebra. Eu reconheço as mudanças em meu ser pela lenta quebra das inutilidades, das mentiras, do grotesco. Como se cada etapa servisse para quebrar o emaranhado de mentiras que cerca com suas grades a verdade. A alteração no modo de correr é em si o resultado da ação que liberta do imenso peso do inútil. Nisso, aos poucos, o que antes parecia grande e complicado, fica menor e simples. Muito perde sua importância e às vezes deixa até de existir. O que acaba por levantar uma assustadora pergunta. Seria possível, que eventualmente, até aquilo que se considera mais importante, perca sua importância? A isso não sei e não quero saber a resposta.
- O fim, o fim e o fim. Enfim, o que exatamente esperas encontrar no fim desta corrida?
- O não mais correr! O que não significa ficar parado, mas sim, o exato oposto. Pois no fim da corrida se chega a um nível de movimento absoluto. Um tão rápido em que até a idéia de movimento deixa de existir. Um estado onde não mais se está cansado, pois não há mais motivos para tal; onde não há mais o horror dos estagnados a rodear, pois estes estão à uma distância inalcançável; onde, por fim, a falta que motivou a corrida não mais existe. É um estado que realmente só pode ser descrito por aquele que nele já chegou. Mas espere, você voando aqui ao meu lado, não deveria saber disso muito melhor que eu. Já que esse voar deve certamente implicar um conhecimento de todo o movimento.
- O que eu sei de corridas? Nunca corri, pelo menos não eu, como eu agora me apresento, mas posso te dizer o pouco que sei sobre elas. Primeiro, como já sabes, existem dois tipos de pessoas: as que se movimentam e as que ficam paradas. As que se movimentam, não importa como, são as que realmente são, que são um ser. Um ser que sabe que algo lhe falta, apesar de não saber necessariamente o quê. Um ser que quer atingir o ponto mais alto que pode imaginar, buscando desesperadamente esse ideal. Enquanto, as que ficam paradas são as que não são, não são um ser, não são nada além de ficção. Ficção estagnada cumprindo eternamente um papel que não sai nunca do mesmo lugar. Nada falta a eles, pois nada podem realmente sentir além de respostas já inscritas em seus roteiros. Uma ficção, que como qualquer outra que fica parada, é extremamente perigosa, já que sempre coroe tudo ao seu redor, ameaçando todos aqueles que são obrigados a estarem na sua presença, por assim serem forçados a experienciá-la. Porém, no caminho, movimentar-se não é necessariamente uma evolução do estar parado. Esses não são dois estágios diferentes que evoluem um do outro, mas duas condições que podem se alternar durante o caminho. Pois aquele que se movimenta pode facilmente parar quando alcança uma etapa que lhe oferece um certo conforto, esquecendo completamente o desejo de chegar no fim, caso não acabe por considerar essa etapa como o próprio fim. Acabando por abandonar o movimento e abraçar a estagnação. Dessa forma, entregando-se lentamente a corrosão provocada pelo gás de ignorância que é expelido pelos eternamente parados. Deformando-se, se assim por muito tempo ficar, à ponto do não retorno. Deixando finalmente de ser e passando eternamente a ficção, ficção estagnada. Na verdade, há sempre mais inclinação do movimentar-se para o parar, que o oposto. Na verdade, não há o oposto. Pois o parado só leva ao mais parado. E a transformação de um parado para um em movimento, só se dá realmente por acidente. Acidente raro e com um limitado espaço de ação, já que só pode ocorrer antes que a corrosão da estagnação tenha se tornado irreversível. Curiosamente, o acidente que dá vida ao movimento não é fruto de um agente exterior, mas sim do próprio estado da estagnação. Não da estagnação em si, mas da confusão causada por esta. Já que os efeitos da corrosão inicialmente acabam por criar reações adversas naqueles em que ainda o estado não é irreversível. Reações que numa específica combinação podem, sem haver real certeza de tal, levar ao raro acidente que dá vida ao movimento. Agora como no fim da corrida esse movimento se mantém tão rápido que nem mais é necessário correr? Isso é tão óbvio que nem vale a pena ser dito. E isso é o que eu sei sobre o movimento. Sendo que, na verdade, vejo no seu atual correr pouco de um real movimento. Mas já chega, nem sei mais por que vim acompanhá-lo. Talvez esperasse mais, talvez esperasse dar início a mais. Realmente não sei. Agora vou embora.
- Espere, antes me diga por que veio voar ao meu lado? Por que eu?
- Quer saber por que uma linda garota que já está a voar, o fez, durante um tempo, ao lado de um garoto que corre desesperadamente pelo nada? Um garoto que busca algo que lhe falta e que não sabe ainda como atingi-lo. Um garoto que busca se completar, que tem a visão, mas que age em muito como um completo cego. Esta é realmente uma ótima pergunta! Espero que um dia consiga respondê-la – diz isso e vai embora voando para o distante.
- Não! – grita o garoto com toda a sua força. – Eu entendo agora! Sim, eu entendo! Volte por favor!
Mas ela não volta e o garoto continua a correr; a correr tomado por um cansaço maior que qualquer outro; um profundo cansaço nascido do entendimento do que era necessário ser entendido, mas que o foi, mais uma vez, tarde demais; um entender a gritar ininterrupto vibrando no nada pela vazia existência.

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