A Corrida

Parte II

- Vamos ver, corre para não ficar para trás, só que não tem a mínima idéia se está na frente, ou se está atrás, e pior ainda, nem sabe se realmente se movimentou para alguma direção.
- É... não tenho certeza, o que mais quer que eu diga? Talvez sim, talvez não, talvez tudo, talvez nada, quem sabe?
- É... quem sabe?
- Não eu.
- Definitivamente, não você.
- Já pensou que talvez esteja na trajetória errada?
- Sim, talvez, mas a minha trajetória é a que sempre é. É a trajetória da maioria, a em que esta sempre está, mas a em que não anda por estar presa sob as grades da mentira, no reino do horror, a ser digerida pela ignorância. É a em que todos aqueles que se libertam seguem. E tenho quase certeza disso!
- Quase?
- Sim, porque durante todo esse tempo correndo sozinho, cheguei a conclusão que o problema não é a trajetória em que corro, mas sim o modo como corro. Já que mesmo que hajam outras trajetórias a se seguir, estas a mim sempre serão completamente desconhecidas. Pelo menos, serão enquanto eu for quem eu sou, ou melhor, enquanto eu for algo compreensível aquilo que eu sou. Pois, para seguir outras, eu teria de me alterar à ponto de não só alterar esse eu, mas o próprio conceito desse eu, transmutando-o a algo diferente, que me é agora completamente desconhecido e, até as minhas presentes capacidades compreensivas, inimaginável.
- Como assim, o modo de correr?
- Talvez a questão seja que eu só me vejo sozinho nesta corrida, porque eu corro de uma forma diferente da do resto.
- E onde você quer chegar exatamente com isso?
- Que eu tenho que encontrar um modo específico de correr, um específico para poder do jeito mais rápido possível finalmente chegar onde quero. Devo, assim, correr de várias diferentes formas até achar a melhor, a que seja realmente a minha. E é exatamente isso que tenho feito. Porém, ainda sem muitos resultados. Mas o importante é que tento, já que mesmo que só a encontre por acidente, há mais chances desse acidente ocorrer se eu aumentar ao máximo sua área de probabilidade, praticando o máximo possível. Por exemplo, uma vez tentei correr como uma pessoa normal. Pelo menos, tentei da forma como achei que uma pessoa normal fosse correr. Não adiantou de nada. Porque não tendo a mínima idéia de como uma pessoa normal corre - idéia a qual provavelmente nunca terei - tentei simplesmente copiá-la, essa idéia que não era minha, e, assim, acabei por criar uma idéia completamente diferente. Esse foi o máximo que consegui, pois era simplesmente uma impossibilidade! Nada consegui, mas tentei e tentando, pude passar para outra diferente tentativa, aumentando, então, minha chance de chegar a certa.
- Ou talvez, não adiantou de nada, porque isso não faz o mínimo sentido!
- Talvez, mas veja, e se cada diferente forma de correr nesta trajetória seja um diferente meio de se chegar ao mesmo fim. Já que o fim é o que importa e só o meio é uma incógnita. Então, se quero correr acompanhado, tenho que encontrar o meio certo que seja o meu, que não seja só uma cópia de outro, e que assim seja ao mesmo tempo o de outro, sendo os nossos iguais, para que possamos correr juntos. Talvez, quem sabe, encontrar esse meio também seja encontrar o fim, pois talvez assim que eu encontre o primeiro, o segundo se apresente.
- E como essas conclusões estão rendendo?
- Mais ou menos, por que enquanto não o acho, ainda sou extremamente suscetível ao cansaço da corrida.
- Não parece estar cansado!
- Porque não estou, estou no meu melhor desempenho.
- Como então, por acaso pára para descansar de vez enquanto?
- Não, nunca paro. Mas os efeitos do cansaço, mesmo sendo em muito incontroláveis, oscilam por diferentes níveis durante certos períodos de tempo que constantemente se repetem. Como agora em que posso aparentar estar cheio de calma e confiança, mesmo estando no meu pleno estado de completa exaustão. Exaustão que sempre está presente e nunca pode ser anulada enquanto correndo. Veja, por acaso acha que na minha atual condição, tenho algum motivo para assim estar aparentando?
- Na verdade, não.
- Viu, é basicamente isso, corro agora confiante, porque todos os outros se cansaram, aqueles que reconhecem perfeitamente a condição desta corrida se exauriram por completo, e até eles se restabelecerem, eu vou estar aqui.
- É muitos?
- Sim e não. Eu sou sempre eu, só que este eu pode não estar sempre com o mesmo humor. Há muitos humores, dezenas na verdade, e estes sempre se fazem presentes em algum momento de cada período. Talvez não todos, mas pelo menos um de cada tipo. Já que estes podem ser resumidos em três tipos que dominam todo o resto. Há os quebrados, os determinados e os entorpecidos. Os quebrados são aqueles que têm total conhecimento da condição atual, do desespero da corrida, da falta de possibilidades, da grandeza das ilusões, da incerteza de caminhos, do nunca alcançar. São os que realmente já desistiram de tudo, que não vêem mais sentido em prosseguir, mas que o fazem por serem por demais conscientes, por conhecerem totalmente sua natureza temporal, e com isso, saberem que em breve não estarão mais presentes e que os determinados tomarão seus lugares e verão tudo de uma forma completamente oposta. Mas, apesar disso, apesar de não o admitirem, também são os que prosseguem por ainda terem uma singela esperança de algum dia chegarem ao fim, mesmo achando isso extremamente difícil de acontecer. São, por fim, os que se retraem no interior a qualquer sinal de contato, por reconhecerem seu estado de ser. Os determinados, por sua vez, seus opostos, são os que sempre acreditam em um fim e na possibilidade de atingi-lo, sem nunca duvidar uma vez sequer disso. São os eufóricos, os confiantes, os que mesmo com passos tortos, não tão conscientes como os dos quebrados, prosseguem. São os que se apresentam no exterior, mesmo até quando só há inclinação para a tragédia, por assim ser muito melhor que o oposto. Os entorpecidos, enfim, são os intermediários entre os dois primeiros, os que mais existem pelo cansaço desses do que por uma reação a algo. São os que não pensam, que só seguem por obedecerem comandos preestabelecidos, os que podem se manter correndo sem mesmo ter de pensar para isso. São tanto exteriores quanto interiores, já que para eles não existem tão complexas definições. Mas, então, mesmo nesta divisão, não importa em qual humor eu esteja, eu, como eu, sempre me componho dos fatos básicos que fazem de mim quem sou. E mesmo assim, não é necessariamente tão incontrolável, só a ponto de eles não poderem ser negados e de sempre terem de se revelar em algum momento.
- Como?
- Como agora, talvez eu não esteja realmente calmo e confiante porque os outros estejam cansados, mas porque está aqui, porque quando eu vi uma linda garota a voar ao meu lado, eu quis assim parecer para ela.
- É assim fácil?
- Sim, mas claro que o quanto mais determinado eu me fizer agora, pior vai ser mais tarde. Mas posso agüentar, já estou acostumado. Na verdade, nem sei se isso é realmente uma resposta provinda de uma real escolha, já que apesar de ser esta uma resposta óbvia que sempre será preferível ao oposto, talvez o seja mais como uma reação automática e inegável, do que como qualquer outra coisa. Basicamente é como tudo sempre é.
- Mas como vai estar depois?
- Ha ha ha – ri aparentemente uma verdadeira risada. - Essa é uma pergunta extremamente engraça! Especialmente, porque posso lembrar claramente da resposta. Como vou estar? Vou estar a mais cambalear do que correr, a mais tropeçar do que pisar, e ainda me forçando a parecer como se nada estivesse acontecendo, quando, na verdade, vou estar me despedaçando, provavelmente tomado por uma horrível dor, a tudo duvidar, a tudo questionar, a pouco esperar, a pouco acreditar. Mas, de novo, isso realmente não importa muito, não é nada a que eu não já esteja plenamente acostumado.
- Tudo isso só para soar calmo e confiante?
- Sim, e é melhor que o oposto. Mas também só é assim, porque eu não tenho uma única razão sequer para me manter constantemente nesta condição. Pois todo o esforço necessário para me manter nela, acaba como sempre por se revelar completamente infrutífero, fazendo, então, florescer todas as razões porque não se pode estar calmo e confiante. E essas razões imediatamente se põem a cortar das piores e mais profundas formas!
- Por que não há razões para se manter calmo e confiante?
- Você logo vai embora, não?
- Sim, eventualmente.

Continua na Parte III

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