Detalhes para o Enterro de um Vivo

Dezembro, 2005
Revisão - Julho, 2006

Parte I

Na completa escuridão, caminham três homens. Três diferentes homens que podem ser o mesmo, ou talvez todos, não necessariamente iguais, não necessariamente opostos. O primeiro homem, que segue na frente, olhando e contemplando com fascínio o caminho, ou a falta deste, é o de aparência mais jovial, apesar de todos terem a mesma idade. Seu rosto é tranqüilo e belo, quase que intocado pelas marcas da existência e da experiência, apesar de ter, na verdade, toda. Seus olhos são vivos e esperançosos, como se apesar de dotados de visão, possam facilmente se desfazer dela quando se faz necessário. Porém, uma singela melancolia também parece se fazer presente em sua constituição. Melancolia muito bem escondida aos olhos dos cegos e muito bem ignorada pelos que não se importam. Seu andar é simétrico, como um deslizar estético pelo espaço, com cada ponto se encontrando numa perfeita obra. O segundo homem vem a seguir, mantendo certa aceitável distância do primeiro e do terceiro, que vem atrás. É o mais sério de todos, afundado em preocupações sobre si próprio, ignorando, de certa forma, os outros. Seu rosto trás as marcas do tempo, da continua e insuportável dor e do extremo cansaço. Seus olhos são vazios, já viram de tudo e se recusaram a se fechar, fazendo, então, o contrário, investigaram e investigaram, até perderem totalmente a capacidade de se cegarem. Seu andar demonstra uma desistência, mas uma desistência que se sente desnecessária, apesar de irrefreável, e que prossegue pela força da lógica de se prosseguir. O terceiro vem por último, como aquele que só segue e tem medo de tomar qualquer outra posição se esta não for convocada pelos outros, sempre pedindo, assim, por uma aceitação que não vem, por não ser necessária de ser dada; é o maior de todos, grande e forte, mas sem reação, como se a esta desconhecesse por completo; não aparenta idade e nem definição. Seu rosto é a pura contradição, algumas vezes sob as sombras demonstra ares de genialidade, outras sob a luz, de retardamento, podendo realmente não ser nenhum dos dois, mas algo mais, ainda a ser definido por palavras. Seus olhos são perdidos, sem direção, nunca sabendo o que fazer, cheios das perguntas que não podem ser respondidas, por nunca terem sido necessárias; não são vazios, nem vivos, só são por ser e nada mais. Seu andar é uma perturbação, como se não pudesse ver o caminho que segue, que vem seguindo e que pretende seguir. Seu corpo se põe inclinado, quase corcunda, sem razão de ser, como se carregasse nas costas o peso do que não é. Seus passos são desengonçados, tropeçando a cada segundo, como se imensas pedras e profundos buracos se fizessem a ele, e unicamente a ele, presentes. Assim, caminham os três homens a procurar. Procurar, o que não precisam procurar para encontrar.
- A infinita claridade é cercada pela infinita escuridão. É a luz em ápice a furar o espaço, num prato de trevas. Prato sem estrelas, sobre o qual nos encontramos a andar. Antes não havia nada, nem uma, nem outra. Depois, após a expansão da compressão, haverá menos ainda. Mas até lá, pouco a isso nos importará, especialmente porque a ambos já vimos, pois tudo já foi, é e será. No círculo de trevas a girar, todas as cores hão de se esconder, desdo laranja mais falso, ao púrpura mais vivo. Mas, nesse beco sem luz, nenhuma importa, pois todo passo é o mesmo, pois sempre sobre a incógnita se apresenta. A incógnita, o mistério, o romance! Ó, a descoberta! O contraste da luz no meio das trevas pode ser mais belo que a plena claridade a constantemente cegar! – discursa esperançoso o belo, à frente, a pular e mover suas mãos sutilmente pelo ar.
- Beleza? Que beleza? A de instantes, proporcionada pelo contraste de opostos. Um mero risco sem vida em um quadro, maxificado ao que não é, por uma eternidade de infortúnios. O traço que nada é comparado a pintura não vista. É com isso que se contentas? É com isso que se moves? Ridículo! Qualquer chama no meio da escuridão é mais um anúncio a lembrar o que deveria ser, do que qualquer outra coisa. É mais um espetáculo a torturar, uma exclamação do pleno não visto, a maxificar a presença das trevas, a fazer sentir profundamente a presença de suas garras cortantes! – discursa o cansado em resposta.
- Por que estamos na escuridão? – pergunta hesitante o grande e desengonçado.
- Porque todo enterro só pode ser feito na escuridão – responde o cansado.
- Mas como, se tudo que há de ser na luz, também há de ser na falta desta – contesta o belo.
- Sim, mas mesmo que apesar de tudo que a luz revele já estar presente na escuridão, nessa nada pode se ver até que a luz seja feita. Então, ao enterrarmos na escuridão, esse enterro só será desfeito com a presença da luz. E é exatamente isso que queremos. Pois, se já houvesse luz, um enterro não seria necessário – responde, mais uma vez, o cansado.
- Enterramos para que se haja a luz? – pergunta o desengonçado.
- Sim. Pelo menos, é isso que esperamos. Com esse enterro talvez se de mais um passo para luz – diz o cansado.
- Então, chegamos? – pergunta o belo.
- Talvez – reponde o cansado. – Pergunte a ele – diz apontando para o desengonçado.
- Nada sei, não me perguntem, a decisão está com vocês – responde apressadamente o desengonçado.
- Então, chegamos? – repete o belo.
- Não podes responder por si próprio? – pergunta o cansado.
- Talvez, talvez possa, talvez não possa – responde o belo. - A escuridão é sempre a escuridão, é o não ver, ou melhor, é o não reconhecer. Não reconhecer por pura cegueira, ou por pura negação; o não reconhecer daquilo que se esconde a plena vista. Porém, nada naturalmente se esconde, há necessidade de um esforço para que isso ocorra. A luz, a claridade, não é um produto da ação, pois simplesmente é, e nada a isso alterará, mas a escuridão, por sua vez, só se dá na ação, na ação provinda da inação que a executa para continuar existindo.
- Isso não é uma resposta! – exclama o cansado. – A escuridão pode ser um produto da ação provinda da inação, mas esta é sempre referente àqueles que a mantém: tanto os cegos, pela apreensão da inação de outros cegos antecessores; tanto os negantes, pelo não reconhecimento do que sabem muito bem saber reconhecer.
- Isso também não é uma resposta! – contesta o belo. – Se a queres tanto, por que não a dá?
- Digas-me, a reconheces pelo menos? – pergunta o cansado.
- Posso começar a ... – começa a responder o belo até ser interrompido pelo cansado.
- Pare! Tenho uma melhor idéia. Primeiro responda você! O que reconheces na escuridão? – pergunta ao desengonçado.
- Na escuridão está tudo aquilo que não se vê. E... não sei. O que mais posso reconhecer nela? Não sei dizer. Só posso fazer suposições sobre o que lá se esconde. E posso fazer tantas suposições a ponto de ao presenciá-la o peso destas se tornar insuportável, até a ponto do obter de um verdadeiro reconhecer se tornar assustador – responde o desengonçado.
- Tens medo do que há na escuridão? – pergunta o cansado.
O desengonçado fica calado, se retrai, evita seu olhar.
- Dá-me a resposta? – reforça o cansado.
- Tenho medo de escolher na dúvida, para depois me encontrar errado. Tenho medo que o que se esconde possa estar nas minhas piores suposições. Ou pior, tenho medo que o que se esconde nem esteja em minhas suposições. Tenho medo que a dúvida tenha sido para nada! Já chega, por favor, é só isso que consigo dizer – responde o desengonçado.
- Agora você! – diz o cansado para o belo.
- Reconheço o mistério da possibilidade! Reconheço que talvez todo o magnífico que sei muito bem existir, mas que ainda não encontrei, lá esteja presente. Estando lá presente, só a esperar meu movimento de ação de nulificação da ação provinda da inação, para que dele possa desfrutar – responde o belo.
- Ha, ha, ha, ha... – ri, o cansado, uma risada sem vida, em resposta. - E como pretendes revelá-lo? Como pretendes agir? Ou melhor, quando pretendes agir?

Continua na Parte II

Um comentário:

DIDI disse...

Achei poético, o texto mais interessante e bem escrito de todos até agora, talvez por uma identificação.