Detalhes para o Enterro de um Vivo

Parte II

- Eventualmente, tudo há de caminhar para a revelação! – exclama o belo.
- Não, nada caminha, tudo se é, nada há de ser revelado, tudo há de ser visto – diz o cansado.
- Mas por que não o é? – pergunta implorante o desengonçado.
- É... então, já que pareces sempre saber tudo, mesmo neste deplorável estado, responda isso: por que não o é? – reforça o belo para o cansado.
- Deplorável estado? Por quê? Por quê? – começa o cansado a gritar com raiva. - Queres saber realmente por que me encontro assim? Como acabei desse jeito? – avança aos poucos em fúria para o belo. - Por causa de quem? Por causa do quê? – pára de gritar e tenta se controlar. Coloca a mão sobre sua face, abaixa sua cabeça e respira fundo. Depois retira a mão e voltando a olhar para o belo, lhe dá um sorriso malicioso. - Porque parte do que está na claridade, lá não deveria estar, porque certas apreensões de cegos antecessores foram tão profundas, que com sua existência bloquearam o caminho para o que deveria ser plenamente visível.
- O que queres dizer é que é necessário se esconder algumas coisas para poder revelar outras – conclui o belo.
- Sim, não é óbvio? – diz o cansado. - A inação que dá vida a escuridão, se encontra, e sempre se encontrará, na claridade, é o óbvio que poucos vêem como culpado e que sempre está lá a agir e maquinar a destruição. A inação, assim, é parte da claridade, mas não como parte integral desta, mas sim como parte limitante, que dá vida as trevas e as faz rodear a luz, fazendo do uno, dúbio. Devemos enterrar o limite, ou pelo menos um dos limites, para que possamos avançar, pois o movimento real só se dará pela ação de neutralização da ação da inação.
- Devemos enterrar a esperança – murmura baixo o desengonçado.
- Cale-se – grita o cansado para o desengonçado. – Devemos enterrar aquilo que se fosse mesmo necessário de ser apreendido, deveria ter o sido, muito depois do que o foi, muito depois de outras apreensões mais clarificantes que não o foram. Então, me responda, chegamos? – pergunta ao belo.
- Sim, a escuridão é a escuridão, não há caminhos a ela, só um reconhecimento, aqui enterramos, pois nela estamos – responde o belo. – Porém, se o que queremos enterrar é tão nocivo ao que queremos alcançar, por que não o apagamos de uma vez por todas para nunca mais voltar?
- Não – grita o desengonçado, que depois se põe envergonhado por sua ação.
- É... por que não matamos em vez de enterrar? – pergunta em tom de ironia o cansado, olhando maliciosamente para o desengonçado.
- Não, não, não podemos! – exclama em desespero o desengonçado.
- Não podemos...? Ha... certamente, não posso, mas podemos, podemos muito bem – diz o cansado.
- Então, por que não o fazemos? – pergunta o belo.
- Porque talvez parte daquilo que nos impede agora, nos ajude no futuro. Talvez aquilo que agora limita, depois expanda, quando colocado sobre novo eixo ainda a ser explorado – responde ao belo. – Quem sabe? Talvez isso até seja uma verdade! – exclama sem muito acreditar para o desengonçado.
- Há de ser, há de ser – diz ofegante o desengonçado.
- Logo, enterramos aqui, não há mais questionamentos quanto a isso? – pergunta o cansado.
- Acredito que não – responde o belo.
- Não – responde o desengonçado quase chorando.
- Mas, então, você que diz a tudo saber, o que enterramos? – pergunta o belo ao cansado.
- Por favor, não é óbvio? Um de nós, é claro, o fator limitante! – exclama o cansado.
- Não é óbvio? – murmura lamentando o desengonçado.
- Como, se é só parte de nós que é o problema, por que não só esta parte, por que um inteiro? – pergunta o belo.
- Nós? Parte? Inteiro? Que piada! Primeiro, nós, que nós? A aflição, a doença, só afeta realmente a um que aqui está, e só este é o culpado pelo sofrimento dos outros. E que parte, de que inteiro? Sim, claro há partes, há milhares de partes, acreditar em uma divisão só em três seria ridículo, mas se pode dividir em três quando se pensa nos eixos de que essas derivam. E se um eixo está infectado, deformado, todas as suas partes provavelmente também o estão. Mesmo que hajam alguns dissidentes desse inteiro, que dele nasceram, mas dele progrediram para algo mais. Sacrifícios são necessários em batalhas – diz o cansado.
- Mas, mas, e se em vez de enterrarmos esse inteiro, o controlássemos, trabalhando com uma das suas partes que se renegou, para que esta o sobrepujasse e nós pusesse todos em movimento? – pergunta com uma esforçada convicção o desengonçado.
- Claro, imagina, fazer uma pequena parte que se rebelou do inteiro sobrepujá-lo. Como se isso fosse fácil! Como se isso fosse rápido! Crescer de um eixo deformado, crescer sobre uma deficiência. Que me lembre, queremos o tudo, e não só o adequado, e queremos o agora, não o em cem anos – responde o cansado.
- Era só uma possibilidade – murmura lamentando o desengonçado.
- Uma possibilidade? Mais uma suposição entre milhares, não? Uma dúvida! E se duvidas, e não pretendes agir, cale-se, que é o melhor que podes fazer! – exclama o cansado para o desengonçado.
- Mas qual? – pergunta o belo.
- Não é óbvio – responde o cansado. – Mas se jogos são necessários, vamos fingir que já não sabemos, e analisemos a questão – diz olhando para o desengonçado. – Quem vai começar?
- Os que anunciam o final, que sejam os que nele acabem se afundando – murmura o desengonçado.
- Pare! – exclama o cansado. - Devemos nos apresentar para ver qual o mais qualificado ao enterro. Começa o que vai na frente, provavelmente, o mais próximo da visão de uma possível luz.

Continua na Parte III

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