Detalhes para o Enterro de um Vivo

Parte III

- Quem sou? – começa o belo. – Sou aquele que ama! Que ama sobretudo a beleza, e sabe que ela está presente em tudo, sabendo sempre apreciá-la como deveria ser. Sabendo também que há uma beleza superior a todas, uma bem específica, que há de eventualmente provar a existência daquele que lhe dá existência, uma que precisa ser conquistada sutilmente, se provando o mais digno para tal. Sou aquele que nunca desiste e está a sempre procurar o máximo dos estados, o atemporal, o inegável, o uno, o infinito: a felicidade, que é existir sendo o que sempre se é. Aquele que na pior das circunstâncias, compreende suas razões e com elas trabalha para chegar a melhores, o que vê o que se esconde embaixo da sujeira da complicação e luta para chegar a simplicidade que realmente é. Sou o que sempre quer estar a cantar, todas as músicas de todas as direções, de todas as dimensões, de todos os cheiros; a dançar, todas as danças, horizontais, verticais e tangenciais, a partir de todos os jogos que lhes dão vida, com todos seus múltiplos passos; e a voar, para dentro e para fora, para cima e para baixo, para esquerda e para a direita, sobre toda a superfície da mais pura pele. É isto suficiente?
- Não, mas será aceito. Então, sigo, pois venho no centro, como há de ser. Sou o que vê, o que realmente vê, que vê com lógica e não tenta se enganar com floreamentos utópicos, o que seleciona, divide e classifica. Sou o que também vê a beleza e tem desejo de consumi-la, mas não sabe se pode amá-la, pelo menos, não assim tão fácil. E que sabe que não há realmente uma beleza superior, específica, a ser encontrada, havendo no máximo uma a ser construída a partir de uma entre milhares, uma escolhida pelo esmo acidente. E além disso, uma beleza que não deve, e nem pode, ser conquistada, mas sim dominada, dominada pelo poder do que pretende construí-la. Sou o que tenta e tenta, mas que acaba se cansando e respondendo ao normal como estado inabalável, apesar de também querer atingir, o atemporal, o inegável, o uno, o infinito: a felicidade, porém sem aceitá-la tão facilmente, não a considerando como um passe de mágica conseqüente, mas como algo a ser analisado, nas origens e nos motivos, e que se reconhece, por fim, provável criador destes. Aquele que também vê a sujeira e a entende, mas para então por ela sentir mais nojo e repugnância, que vê que o simples não foi só dominado pelo inútil complicado, mas também foi esmagado por ele a ponto de não retorno. Sou o que quer se pôr também a cantar, mas sabe que para isso deve escrever suas próprias canções; a dançar, também coreografando seus próprios passos, e a voar, a partir da criação de suas próprias paisagens, mas que também no fim não tem certeza que isso valha realmente alguma coisa. Então, o último!
- Por que não me matam de uma vez por todas? Não seria mais fácil! – diz atormentadamente o desengonçado.
- Pare! Pare de se lamuriar e obedeça que é o melhor que fazes, que sempre fez e fará – responde o cansado.
- Sou o que tem esperança, mas que sofre para mantê-la inabalada num mar de confusão que oscila da euforia à dor perpétua. O que ama, mas que também pára para se perguntar quando será amado e se isso é sequer possível como se realmente quer. O que vê a beleza e acredita nela como algo maior, mas que não tem absoluta certeza disso e tem menos ainda que algum dia possa alcançá-la, caso seja verdadeira. O que cria, para a ela atingir, mas que resposta nunca recebe. O que quer por ela ser conquistado, mas só consegue ver avanço se a ela dominar, o que até jubila na dominação, mas cai no seu reconhecimento. O que quer ser visível e não ficção, que faz um máximo esforço para tal, que de nada adianta e acaba sempre sendo um prisma de maior indecisão, traduzido ainda em maior confusão. O que quer ser feliz, mas só vê tempo, negação, divisão e finitude. Aquele que vê sujeira, mas também vê sobreposta a ela o potencial não alcançado e que fica tonto, enjoado, por isso. Por fim, o que quer cantar, mas já perdeu a voz de tanto gritar; dançar, mas destruiu os joelhos de tanto cair, e voar, mas não consegue nem andar, nem nadar, só deitar e sentar. Sou o que tem de encarar a verdade, e assim só peço, me mate de uma vez por todas!
- Sabes muito bem que isso não pode ser feito! – exclama o cansado.
- Pode sim! – contesta o desengonçado.
- Não por nós! – contesta o cansado.
- Então, como decidiremos? – pergunta o belo.
- Não decidiremos, eu decidirei! – exclama o cansado. - Sou o lógico aqui, sou o que sabe julgar qual deve ser a melhor decisão a ser tomada. Sozinho posso tomar qualquer uma com o máximo de certeza. Querem, então, saber o que obviamente já sabem?
- Não precisa de jogo, simplesmente acabe comigo, é o melhor, é o mais fácil! – exclama o desengonçado.
- Continue, o quanto mais rápido o fizer, o mais rápido terminaremos – diz o belo.
- Vejamos o que temos aqui, analisemos a situação de cada um. Primeiro você – diz apontando para o belo. - Quem é você se não uma ficção produzida por sua própria adoração. Um herói? Um amante? Um admirador? Um idiota? Sim, um idiota que só sabe adorar e espera por demais daquilo que adora. É seu mundo possível, é sua vida provável? Sim, talvez até seja, mas só pelo advento da mais pura série de acidentes. Um advento por demais raro para se esperar em tão curta linha de tempo, caso esta esteja mesmo sendo realmente seguida. Mas és necessário? A existência não esconde segredos, quando não se aparenta nenhum sentido, é porque não há nenhum, ou porque não há nenhum que importe àquele que o procura, que a ele de alguma forma infira. Logo, para que existir? Nenhuma razão senão a que criamos. Assim, sustentamos a nossa própria existência. E que melhor sustento senão aquele do que adora, que adora profundamente?
- Sim, pois sem uma adoração, não seriamos nada – diz o desengonçado.
- Talvez sim, talvez seriamos uma árvore – completa o cansado. – Seguimos, então, a mim. Sou ficção? Não. Escrevo a mim mesmo, assim, provavelmente não o posso ser. Pelo menos, não pelo que até então sabemos. Sou a ordem no caos, a organização que domina o aparato e as interações a este apresentadas. Então, se não sou ficção, sou, como se diz mesmo, humano? Não sei. Ou melhor, seria à que caminha a humanidade? Talvez, pois se onipotente, sou seu potencial, sou ao máximo que se pode chegar como criatura que é. Mas, vendo em conjunto do tempo e do espaço, é aquilo que não é seu potencial, o que se diz realmente ser? Há realmente alguém a caminhar? Nada se torna, tudo se reconhece sendo o que sempre é. Assim, é o estático, humano? E é o movimento, mais que humano? Ou é o estático, coisa? E o movimento, então, humano? Certamente, a ficção que não caminha acompanhada da humanidade, é coisa. Já que a ficção alimenta o humano, não o podendo ser.
- Não são coisas, são o que podem ser, são o potencial, mesmo não tido! – contesta o belo.
- Quer que eu repita. Nada pode ser, tudo se é!. Não mais me interrompa. Continuo. Mas, então, sou necessário? É óbvio que sim! O que seriam sem mim? Se coisas podem se aparentar humanas é porque em certo ponto apreenderam parte da lógica, da ordem, a desvirtuaram é claro, mas a apreenderam do mesmo jeito. Na verdade, se não o tivessem feito, nem coisas seriam, seriam só natureza, só o simples indomado, sem a sujeira as fazer o que são, nem a ordem as fazer humanas. Assim, sou a estrutura que constrói aquilo que sustenta a própria existência do ser. E que melhor estrutura senão aquela que se reconhece como tal?
- Concordo por não saber, concordo por desconhecer a alternativa – murmura para si próprio o desengonçado.
- Por último, você – diz apontando para o desengonçado. - Quem és? Quem és? Esta é uma ótima pergunta. Na minha opinião um desgraçado, o maior de todos. Como algo com o seu comportamento perante a tudo não o seria. Tanto medo! Tens medo de quê por acaso? De vida, da ação para um sentir? Ridículo. Uma besta tão grande, com tanto poder, que só sabe cambalear, tropeçar, lamuriar, inclinada de cabeça baixa, como se tivesse vergonha do infinito que é. Que patético!
- Não é poder, não tem nada a ver com poder, é algo mais – murmura o desengonçado para si mesmo, sem o sério escutar.
- Ó, não agüentas o peso! – continua o cansado. - O tudo é demais para você. Pois esmague-o! Melhor, digeri-o! Pedaço por pedaço, como seu e só seu. A pergunta não é quem és, é o que és? Seu poder é tão imensurável para minha capacidade, que sequer me atrevo a fazer suposições. E sua negação de tal extensão, me deixa tão enjoado, que nem posso ponderar sobre o assunto. Confusão, confusão e mais confusão, essa é a maior constante que consegue aparentar. Pergunto, és necessário? És necessário nesse estado? Quem sabe, talvez, tens a esperança do cativo, tens a criatividade daquele que imagina a liberdade. Assim, pelo menos, assumes a tarefa do criador, daquele que constrói as possíveis portas para a possibilidade, apesar do medo que tem de tomá-las. O primeiro é alegre, mas não vê muita importância nesta masturbação literária; eu, por mim, tenho mais aspiração para fazer uma quadro de classificações, um tão interessante que provavelmente me faria dormir antes de seu término; já você, podes dizer que serve para isso, mesmo na sua confusão, mesmo no seu tormento, pelo menos, consegue, quando se controla, mandar sinais de fumaça pelo horizonte. Mas o que é isso, perante ao que realmente é, ao que não assumes ser? Triste, trágico!
- Então, me mate de uma vez por todas, não seria perfeito? – diz o desengonçado.

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