A Queda

Parte II

- Ninguém não é nem um pouco normal – diz o garoto com ironia. – Voltando. O fatídico me ocorreu, vindo de seu oposto, o magnífico. Por um curto período de tempo, alguém que definitivamente não era ninguém sentou-se sobre meus ombros e ali ficou. Até, que por cegueira minha, caiu. Caiu para nunca mais voltar.
- Ó, o horror, o horror!
- Pare! Assim, a culpa pela queda do alguém que não era ninguém, me fez tropeçar e cair para o sólido e existente chão. A falta do peso sobre meus ombros enfraqueceu minhas pernas e me corroeu por inteiro. Fiquei por muito tempo com a cara no chão, mas finalmente quando o meu vazio se cansou de pedir para ser completo, ganhei novas forças e me levantei. Tudo começou a ficar mais claro a partir de então.
- Você finalmente começou a ver a verdade ao seu redor, entender profundamente todas as minuciosidades do ambiente, as complexidades escondidas à vista de todos, o sentido de tudo que não faz sentido fazendo sentido! – exclama a garota extremamente entusiasmada com a história.
- Não, tudo realmente começou a ficar mais claro, sabe, como claridade, mais luz, mais branco. As paredes, a paisagem, o cenário começaram a ficar transparentes, revelando um grande branco fundo vazio.
- As isoladas praias e as escuras nuvens trovejantes também?
- Sim, também. Eu vou parar de falar!
- Não interrompo mais. Pode continuar.
- Então, tudo estava transparente. O tempo foi o primeiro a ganhar minha atenção, com o espaço transparente, todas as páginas do passado, do presente e do futuro se sobrepujaram umas sobre as outras. O segundo se tornou minuto, que se tornou hora, que se tornou dia, que se tornou ano, que se tornou por fim século. Uma eterna lentidão.
- Uma tediosa lentidão.
- Sim, uma tediosa lentidão assombrada pela culpa, pela falta, pela necessidade de completeza.
- Necessidade que nunca se concretizou. A culpa era forte demais, não? O peso do alguém que não era ninguém nunca poderia ser substituído. Não por você?
- Isso não interessa e não faz parte da história. Deixe-me continuar. Então, com o espaço transparente todos os lugares se tornaram os mesmos e o todo se tornou o nenhum. Não importando o quanto eu me deslocasse, quanto o cenário mudasse, sempre estava no mesmo lugar.
- E sempre estará, não?
- Pare! O mesmo lugar, uma massa uniforme que só mudava visualmente e que nada me fazia sentir além de um mesmo frio vazio. Todas as minhas viagens eram sem destino. Movia-me de lugar algum para lugar nenhum.
- Nunca sabendo realmente onde estava – diz a garota demonstrando profunda solidariedade com a questão.
- Sim, você entendeu. Você sabe do que estou falando! – exclama o garoto, feliz por ser compreendido.
- Não, era meio óbvio e eu gosto de brincar com a sua mente. É divertido!
- Calo-me! – exclama em fúria, tirando as mãos das pernas da garota e cruzando seus braços.
O garoto se cala. Assim, a garota desce as mãos de seus olhos e colando seus dedos indicadores em cada extremidade de sua boca, abre-a.
- Continuo calado.
- Acabou de falar! – exclama a garota.
O garoto continua calado. Então, a garota resolve cruzar suas pernas e tenta sufocá-lo.
- Continuo calado.
- Continua a falar – diz ela com convicção.
Desistindo finalmente, ela volta com as suas mãos sobre os olhos dele.
- As pessoas ficaram também transparentes? – pergunta a garota com indiferença, demonstrando nenhum interesse.
- Não, não no começo – responde o garoto, voltando a colocar suas mãos sobre as pernas dela. - Primeiro elas todas começaram a se parecer entre si. Tornaram-se seqüências repetidas, padrões de pouca originalidade, números tediosos. Tudo com pouquíssimas raríssimas exceções.
- Nenhum alguém que não fosse ninguém nessas exceções?
- Não e mesmo se tivesse, eu estava corroído demais pelo vazio para poder enxergar e deformado demais pela primeira queda para ser visto.
- Ou talvez você só quisesse estar assim!
- Ou talvez a claridade tenha sido tão grande que o mais simples se afundou na total confusão. Mas isso não importa mais, já que só me resta agora cair. Foi aí que tudo acabou. O tempo deixou de ser transparente para sumir completamente, o mesmo com as paredes, as paisagens, todo o cenário, por fim todas as pessoas e, então, o chão. O chão deixou de existir, deixou como todo o resto de ser importante. Assim, cai.
- Mas o fantasma da culpa nunca ficou transparente, nunca deixou de existir. Você nunca deixou de se importar com ele. O fantasma que é dois: a culpa e a falta. Você nunca mais conseguiu separar os dois, não? Nunca sozinho, isso seria complicado demais.
- Isso não importa. A história acabou, assim cai do nada e continuo caindo. A ninguém mais isso deve interessar – diz o garoto soltando as pernas da garota, que por sua vez solta seus olhos e cai para uma direção oposta a dele.


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