A Corrida

Capítulo V:
Parte I

O garoto, ou talvez um garoto, um que desconheceu a existência de qualquer muralha, um que soube prosseguir deixando para trás os que caíram a tal impedimento, continua correndo pelo nada, seguindo para qualquer lugar. Uma garota aparece voando e segue ao seu lado.
- Por que corre? – pergunta a garota.
- Corro por ser necessário correr, por só isso poder fazer, pelo oposto ser demais assustador e repugnante para poder deixar de fazê-lo. Não posso ficar parado. Não quero ser deixado sozinho para trás. Sim, exatamente isso, pois desdo início da existência esse tem sido meu maior medo: ser deixado sozinho para trás! Mas e você, por que voa? Ou melhor, como voa?
- Vôo por voar, por sempre assim ter sido, por sempre assim ser e por sempre assim continuar sendo, já que no voar nenhum desses importa, pois todos são sempre os mesmos. Desdo início, que não se deu de um fim, esse tem sido o meu único real motivo: voar por voar. Assim, vôo sobre os mais altos picos, onde não há mais caminhos a subir, nem fins a dar começo; vôo sobre os mais extensos oceanos, onde tudo aquilo que é se faz de um, sem nunca deixar de mostrar as suas minuciosas particularidades sob sua transparente superfície; vôo sobre a densa floresta, onde todos aqueles que procuram, estão a se deslumbrar com a paisagem, nunca a realmente encontrar o que buscam; vôo sobre a cidade em ruínas, onde a ordem se restabelece tomando sutilmente a falsa organização, e, por fim, nesta cidade, em seu templo central, passando pelas gigantescas pilastras, vôo sobre o lago das límpidas águas verdes, onde o maior de todos os segredos se encontra. Mas, então, perguntas também como vôo. E a isso, só posso responder que é tão simples e tão fácil que nem posso realmente explicá-lo com palavras.
- É claro, sim, é tão fácil! – exclama desolado.
- Mas então, por que necessita correr? Por que tem tanto medo de ser deixado para trás?
- Porque tudo sempre está em movimento. Pelos menos, tudo aquilo que é real e vale a pena ser sentido sempre está. Nada nunca gira em torno da inação, nem nunca vai girar. Do estático não nascem universos. A ação é sempre necessária para se alcançar aquilo que se quer. E se se quer sentir algo verdadeiro, algo belo, é necessário correr. Correr sem parar. Além disso, se não se é rápido o suficiente, te abandonam, te deixam para trás sem se importar, te deixam sozinho, completamente sozinho, perdido na multidão estática. E eu não quero ficar assim, não quero ficar sozinho, não quero ser aquele único esquecido, não quero ser aquele único a não desfrutar de tudo que está pela frente e, o mais importante de tudo, não quero ser aquele único a assim estar mesmo tendo consciência disso, mesmo tendo a visão. Por isso corro e enquanto corro, posso ainda ser o mesmo que seria enquanto parado, mas nesta ação continua, posso também não o ser, posso, pelo menos, estar a deslumbrar a possibilidade que antes não tinha.
- Mas por que correr? Por que não só andar calmamente? Não seria mais prático, mais fácil, que ficar nesta corrida desesperada? Pois, mesmo que lentamente, ao se manter em movimento, sempre se chega ao que há pela frente.
- Sim, mas se chega tarde demais, quando todos já foram embora e só sobraram os restos daquilo que havia a ser desfrutado. A corrida pode ser só minha, mas isso não nega o fato que há outros também nela, que estão nela, mesmo estando a seguir suas próprias corridas. Outros movidos pelas mesmas forças que me movem, com os mesmos objetivos, a disputar o pouco que sobra daquilo que é corroído pela multidão estática, esta que consome e destrói, apesar de nada realmente querer, por nem essa capacidade ter. Assim, não posso seguir só andando, porque não quero viver de restos, não quero viver de experiências usadas, quero o que seja inteiramente meu, do início ao fim.
- Não vejo tanta escassez assim do que há a ser desfrutado, nem uma necessidade de correr. Será que o que a firma é uma verdade ou, em vez disso, mero um reflexo do desespero?
- Não sei. Pode ser só um reflexo, não posso negar essa possibilidade, mas quem sabe? Talvez sim, talvez não. Tenho noção que o andar é muito mais ordenado que o correr, que andando se chega eventualmente ao que se quer, chegando com muito mais clareza, com muito mais certeza, abrangendo muito mais detalhe do que se deseja, que se correndo. Mas há de se entender que para aquele a que algo falta, andar é por demais lento e, assim, por demais arriscado enquanto ainda se beira o abismo do estático. Com a falta, não se pode andar, a dor é por demais devorante para só se dar meros passos, é necessário correr, correr desesperadamente para finalmente alcançar.
- Com a minha exceção, não há mais ninguém para qualquer lado. Se seu objetivo é não ser deixado sozinho para trás, do que vale estar na frente, estando do mesmo jeito sozinho, sendo o único?
- É... na frente? Eu... digamos... meio que... na verdade, não tenho assim tanta certeza de onde exatamente me encontro nesta corrida.
- Como assim, não ultrapassou a todos?
- Não sei, talvez.... eu espero que este seja o caso!
- O quê?
- Não sei, não tenho certeza, nunca vi alguém correndo comigo.
- Nunca?
- Sim, nunca.
- Nunca viu alguém correndo nesta sua trajetória?
- Não! Não na minha, não em outra. Antes de você, acho que, no máximo, vi uma vez dois outros voando juntos alegremente à distância. Não pude muito distingui-los, mas eles pareciam ter tudo aquilo que eu sempre quis, pelo menos que eu quis a partir de então. Mas posso estar errado, pode ter sido alguma outra coisa, pode ter sido só uma criação minha, a apresentar-me exatamente o que eu queria ver. Especialmente porque um deles, com exceção da parte da alegria, se parecia muito comigo. Mesmo assim, o que quer que tenha sido, não importa, já que eles me ignoraram por completo.
- Logo, não tem a mínima idéia se está na frente?
- Não, mas eu devo estar, já corro há tanto tempo que devo estar, espero.
- Por que não pára e espera para ver se alguém o alcança?
- Mas e se não estiver na frente, e se estiver atrás. Se paro no nada, e ninguém aparece é porque estão na frente, e se o estão, parado, perco a chance de alcançá-los.
- Mas e se estiverem atrás, se continuar correndo, nunca vai encontrá-los e sempre vai estar sozinho.
- Sim, mas de novo, e se eles estiverem logo à minha frente. Se eu parar agora, posso perder minha única chance de alcançá-los. E mesmo estando sozinho, é melhor estar na frente, do que estar mais atrás do que se imaginava.
- É, tudo bem, se assim deseja, pelo menos ainda pode dizer que avançou muito na sua corrida!
- Ah... é... talvez.
- Como assim talvez, se corre sem parar, estás avançando, não?
- Não sei se notou ou não, mas durante toda a nossa conversa até aqui, tudo ao nosso redor se manteve completamente inalterado. E é sempre assim, tudo é sempre permanentemente igual. Logo, eu espero ter avançado, mas correndo sem parar por este nada sem definição alguma, não dá para ter realmente certeza. Posso ter feito de tudo, posso ter corrido em linha reta, posso ter dado voltas, posso ter corrido eternamente sobre o mesmo lugar. Mas, mesmo assim com todas essas possibilidades, tenho total certeza que não fiquei parado esse tempo todo, pelo menos, eu espero que não tenha ficado!
- Tem certeza de alguma coisa?
- Talvez.

Continua na Parte II

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