Seguindo a Rua

Parte I - Um Vermelho Reluzente a Correr

- O que sou eu? – se pergunta o garoto, até sua voz se desfazer no espaço vazio, e mais uma vez ele ser tragado pelo cansaço e dormir.

Escuridão, luz, o garoto se encontra na frente de uma caverna, com um ar de vida a lhe atravessar, e assim, começa a refletir como chegou ali, perde-se em suas memórias e lembra então de uma rua.

- A rua – começa o garoto. - O que sei sobre essa rua? Sei que não tem início, nem fim. Sei que segue um caminho reto, sem outras ruas a cortá-la. E sei que por seu percurso se encontram muitos diferentes lugares, um seguindo atrás do outro, sem um real nexo a conectá-los. Sei só isso e sei que não sei nada mais, nem quero saber. Mas como, então, cheguei a essa rua? Qual era meu propósito? Não sei e realmente nunca tive algum. Cheguei por chegar, por não ter mais nada o que fazer, sem realmente estar pensando em chegar nessa específica rua, só em chegar em um lugar que não fosse nenhum lugar, que fosse diferente deste. Minha razão era a mesma para todas as outras coisas que considero simples e que assim consigo manter: aplacar o tédio, o imenso e interminável tédio.

Mas quem sou eu? Não sei, pode-se dizer-me um garoto ou um homem, para mim realmente não faz muita diferença. Só sei que não sou uma criança. Não uma de quatro, não uma de quarenta e não uma de oitenta. Já fui, mas não posso mais ser, sei por demais para sê-lo. Mas sou mesmo isso? Talvez possa ser só um mero pensamento, ou talvez algo até mais simples que nem um pensamento possa descrever. Realmente não sei. Só sei que não sou o tudo, nem o nada. Disso tenho total certeza, pelo menos espero ter. Mas de que isso importa? Nada, realmente.

Mas que lembrança é esta? É sobre uma rua? Não, não é. Pois a rua não tem importância. Pode até ter para alguém, mas não tem para mim. Só está aqui, porque é nela que se passa a lembrança. É sobre mim? Não, menos ainda. Não tenho nenhuma importância e muito menos posso um dia chegar a ter para alguém. Só estou aqui, porque sou eu quem conta esta história. Esta história que é, na verdade, sobre aquilo que todas as histórias são, aquilo único que importa, pelo menos para mim: uma garota, uma linda garota. E só isso vou dizer por enquanto.

Comecemos. Caminhava por essa rua e fazia-o, assim, puramente e simples, sem ter antes estado em outro lugar por onde possa ter começado a caminhar. Só caminhava pela rua e nada mais. Nenhum tempo me cercava, não era noite, nem dia, só era, e a luz era de um nublado sem vida, sem significado. Caminhava à esquerda pela calçada, indo para frente, caso uma frente existisse, com algumas poucas árvores secas esparsamente distribuídas a distrair-me, e nenhum carro a correr ao meu lado, nem pessoas a cruzar-me. Quando, finalmente, vi algo diferente. Não diferente por ser realmente diferente, mas diferente ao que via naquela rua até então. Vi milhares de pessoas a entrar e sair de um grande prédio sem vida, cuja entrada se encontrava alguns metros à minha frente. Um grande prédio retangular de concreto, repleto de janelas sem fuga, que não podia ser realmente um prédio, já que não se parecia em nada com uma árvore, só com um grande e alto objeto retangular de um cinza escuro. Não tendo nada o que fazer, as segui. Entrei no prédio, que tinha ainda menos vida em seu interior, espremendo-me entre muitos por uma pequena porta quadrada e cheguei a um grande salão sem cor, onde as massas se amontoavam. Subi, como todos ao meu redor faziam, por uma escada de mil degraus que se seguia ao salão, fazendo-o, entretanto, com dificuldade, já que os degraus apesar de largos eram muito baixos e o amontoado de pessoas subindo, não permitia grandes passos. Chegando, então, a um outro salão, um maior que o primeiro, mas com a mesma deficiência de cor. Nesse havia mil direções levando a nenhuma. Direções de todas as formas pelas quais as pessoas seguiam sem realmente terem um porquê. Assim, segui por qualquer uma, sem também ter um porquê. Segui por um escuro e pequeno corredor oval, que me levou a outros similares corredores, que se seguiam a outros mais similares corredores, que voltavam aos mesmos corredores, ou a outros extremamente parecidos com estes. Fiquei por horas seguindo pelo mesmo lugar, sem chegar a qualquer outro, cercado de pessoas amorfas, que faziam interminavelmente o mesmo. Quando finalmente a vi. Não, não a vi. Vi um vermelho, um vermelho reluzente a correr entre a massa amorfa. E, então, corri atrás deste. Corri, porque precisava correr. E por milhares de corredores o vermelho segui e à distancia em seu encalço fiquei. Até que a escuridão acabou e uma luz néon azul claro se fez, do corredor se fez uma pequena sala, com um grande portão fechado em seu fim. Lá, o vermelho não era mais só um vermelho. Era o vermelho de um casaco de lã, o casaco de uma garota. Naquele momento, a curiosidade me tomou e conhecê-la desejei.

Uma linda garota. O que mais posso dizer? Tenho sequer palavras para descrevê-la? Não. Queria ter, mas não tenho. Só posso dizer que era uma linda garota. Uma linda garota que encontrei, por uma linda garota querer encontrar, o que sempre quis, mas raramente consegui. Pelo menos, não a beleza que queria encontrar. E naquele momento, cercado pelo azul claro, ainda não tinha certeza. Só tinha pistas que talvez pudesse encontrar o que queria, mas não tinha total certeza. Assim, precisava ter, precisava saber. Fui em sua direção, mas tropecei e caí. No mesmo momento, o portão se abriu, se revelando a entrada de um elevador, e ela nele entrou e subiu, mas no chão eu fiquei.

Teria perdido meu momento? Não faço o tempo, nunca o fiz, apesar de sempre o querer. Só o sigo e tento reconhecer o que ele me tem a oferecer. Geralmente, o fazendo tarde demais. Assim, teria mais uma vez esse tarde demais me amaldiçoado? Teria mais uma vez perdido a porta de entrada para um novo mundo? Não, porque senão não haveria história. Mas, naquele momento, sim. Naquele momento, acabara de perdê-lo completamente e me encontrava desolado. Mais uma chance perdida, mais um caminho que se fora, mais uma vez haveria a devastação sobrepujado à possibilidade. Porém, mesmo naquele estado, algo naquela rápida visão me forçava a seguir. Não podia desistir, não podia me entregar como sempre o havia feito, tinha de juntar minhas raras forças, me levantar e confrontar a dúvida, o grande fechar das portas. Poderia ter perdido um momento, mas sempre existia a possibilidade de outros. Então, levantei rapidamente antes de ser pisoteado pelos outros, que à pequena sala chegavam, e me pus a esperar a próxima abertura do portão. O grande portão que se diferenciava dos arredores de concreto por sua constituição de uma grossa e escura madeira.

O portão se abriu e assim entrei no elevador, que em si, era só uma grande plataforma de madeira, puxada por cordas, provavelmente ligadas a uma distante roldana, que, por sua vez, voltando, eram puxadas por um grande e alto homem de aparência arredia, vestido como um eunuco palaciano, que no canto do elevador ficava. Esse elevador subia por um belo fosso revestido de tapeçaria persa, com desenhos geométricos de centro vermelho e contornos dourados. Tudo coberto por uma viva luz amarela sem origem. Sem saber o que fazer, perguntei ao condutor do elevador para onde poderia subir. Ele, por sua vez, já no ato de puxar as cordas que nos faziam subir, só me respondeu seriamente que para cima. Naquele elevador, só havia o caminho para cima e nada mais. Assim, o elevador subiu e subiu, com muitos milênios se passando, quando finalmente ao topo chegou e outro grande portão de madeira se fez e se abriu. Saí do elevador.

À minha frente, então, se encontrava mais um grande salão. Um extenso salão repleto de milhares de cadeiras de concreto, fincadas no chão, organizadas em fileiras, viradas todas para uma mesma direção, oposta ao portão, para um distante e alto palanque de madeira. O teto afastava-se por uma distância incalculável e deste só se viam as chamas de um fogo ardente. Grossas pilastras quadradas cortavam o salão esporadicamente. E, assim, na frente de uma, após forçar minha passagem pela multidão, encontrei uma cadeira livre e me sentei, pois me parecia o mais propício a ser feito. Ali sentado, rodeado de olhares distantes, mais uma vez, não sabia o que fazer. Ficaria parado a observar os arredores, ou sairia em seu encalço? Com a primeira opção, poderia garantir que se por minha área de observação ela passasse, eu poderia avistá-la e rapidamente alcançá-la. Mas se por ali ela não passasse, de nada isso adiantaria. Especialmente, se fosse o caso de ela já ter encontrado um lugar para sentar. Com a segunda opção, poderia sair a procurá-la, tendo a possibilidade de cruzar com ela pelo caminho, caso ela estivesse a andar, ou caso também ela já estivesse sentada. Mas, também havia a possibilidade, caso ela estivesse andando, de que quando por um lugar eu estivesse passando, ela estivesse fazendo o mesmo por outro, por um ao qual eu ainda iria passar, ou ao qual eu já teria passado. Havendo, assim, grandes chances de nunca nos encontrarmos no mesmo lugar. Logo, por haver maior probabilidade de encontro, me decidi pela segunda. Levantei. Porém, antes de começar minha perseguição, achei melhor de alguma forma marcar aquela cadeira em que estava, caso a esta eu precisasse voltar. Assim, deixei minha mochila sobre esta. Mochila a qual acabara de notar que trazia em minhas costas e que estava vazia por nada eu ter a carregar senão aquela própria mochila vazia.

Saí, então, entre a multidão, em minha perseguição. Andando; olhando para os lados, atento a cada movimento, a cada cor diferente, a cada sinal de vida; mantendo fixos olhos de caçador, apesar de em si, me sentir realmente como a caça, que corre desesperada para manter-se viva; dobrando-me de todas as formas concebíveis entre as massas que em diferentes áreas se amontoavam fechando meu caminho; pulando por cadeiras, cruzando milhares e milhares de fileiras, me espreitando por detrás de pilastras, deixando-me ser levado pelas correntes de movimento que à diferentes direções me jogavam, voltando ao mesmo lugar várias vezes, parando, girando e às vezes em tédio, dançando. Séculos se passaram e nada encontrei. Desisti, não de definitivamente encontrar, mas de naquele momento em específico fazê-lo. Pois, sabia que eventualmente todos estariam sentados, o que quer que ali fosse começar no palanque à frente, acabaria com o vai e vem da multidão e, assim, nessa quietude, eu poderia calmamente rastrear cada uma das fileiras ao meu redor pelo brilho de vida que ali havia me levado. Logo, segui de volta no caminho da minha cadeira e depois de muito andar, já com mais facilidade por saber minha direção, a encontrei. E nesta, encontrei a linda garota sentada sobre a minha mochila.

Continua no Parte II

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