Seguindo a Rua

Parte II - O que em meus olhos vê?

Fui até ela e me pus em frente da cadeira. Ela olhou para mim e neste instante, com seus olhos de mel se encontrando com os meus de vazio, metade de minha mente superaqueceu e morreu, sendo reavivada depois a grandes custos pela outra parte.

- Oi – disse instantaneamente com ar de indiferença. – Essa é minha cadeira! – exclamei apontando. E sim, ainda não sou uma criança de quatro anos, mas eu sou o narrador e não aquele bastardo que estava abrindo sua boca e produzindo palavras naquele momento. Eu posso algumas vezes subjugá-lo aos meus desejos, mas nem sempre e nem com muita facilidade. Assim, lá se foi o baralho às traças.
- É dono desta cadeira que encontrei vazia no mar da incerteza? – perguntou com uma sublime voz e com absoluta tranqüilidade.
- Não, mas nela deixei essa mochila – disse apontando para mochila, na qual ela estava sentada.
- É dono desta mochila que nada carrega por nada ser necessário carregar? – perguntou, continuando a olhar-me fixamente. Seus olhos brilhavam, mas brilhando por brilhar e não pelo que estavam a observar.
- Não, mas encontrei-a em minhas costas e usei-a para marcar essa cadeira.
- É dono de alguma coisa?
- Não, não sou – disse sem mais argumento.
- Sim, o é. É dono de seus olhos! – exclamou com autoridade. - E neles vejo agora tudo aquilo que se esconde.
- O que em meus olhos vê?
- Desejo – disse com um lindo sorriso. - Essa parece ser a única chama que os acende, que os é capaz de acender, apesar de ser uma chama muito bem disfarçada, que se fantasia de vazio. Um vazio que grita suplicante, que nunca parece saber o que fazer e que acaba por decidir-se por se comportar como a água. Afogando, assim, o desejo e só revelando deste uma mera imagem embaçada, esta que luta para se fazer vista, só o conseguindo após uma intensa luta que traga todas as suas forças e a faz desesperada. Mas, a pergunta que se faz necessária é: deseja o quê?
- Não sei. Já desejei muito e tudo que alcancei, um segundo depois deixei de desejar, por, então, descobrir ser uma mentira, que não servia em nada em ser desejada. Desejei o que me disseram desejar, desejando aquilo que aqueles, que me disseram, acreditavam ser a verdade, apesar de ser realmente só uma prolongada falsidade. Tão falsa que sua origem já havia sido esquecida. Assim, depois de muito desapontamento, muitas corridas sem chegadas, finalmente entendi o que deveria entender e desejei saber o que realmente poderia ser desejado de verdade. Parei tudo e a essa resposta fui em busca.
- Encontrou-a?
- Sim, desejo o verdadeiro. Mas só isso sei e nada mais. Pois não o alcanço, posso desejá-lo, mas não sei como é e nem posso sabê-lo da onde estou. Só realmente o poderei, após tê-lo encontrado e após por ele ter sido aceito.
- Você o encontra aqui?
- Não sei – respondi, por só isso me atrever a responder. Naquele momento não podia dizer que tinha encontrado o verdadeiro, não sabia o suficiente para fazê-lo. Mas sabia que tinha encontrado o certo. Pois, como há muito tinha identificado, cada ser transmite vibrações, com cada movimento, com cada palavra e com cada olhar. Tudo em conjunto transmitindo o que a pessoa é, ou que se apresenta sendo, ou que deseja ser, ou que se recusa a ser. E essas são vibrações perigosas que no cotidiano devem ser bloqueadas a todo custo, já que qualquer uma pega a esmo de um mar infestado de monstros, pode derrubar a mais forte das criaturas. Porém, quando se vê um reluzente brilho, já que nenhum bloqueio pode realmente chegar a escondê-lo, há de se liberar para que todas as vibrações deste possam passar. E, o que é deste recebido, leva a um estado de puro êxtase exagerado, que faz correr pela floresta com flores. Assim, em seus olhos eu vi o certo e por ele encantei-me completamente. Um certo que até o último momento não me desapontou, apesar de eu ter constantemente implorado para que o fizesse.
- Talvez devêssemos dançar! – exclamou levantando e segurando minhas mãos. – Deixaremos a mochila para marcar a cadeira – disse se pondo comigo à dança.
- Há tanto que eu quero saber – disse, com meu rosto perto do seu, já com meus braços ao redor dela, deslizando pela multidão sem obstáculos.
- Há tanto que quer que eu queira saber.
- Saberá?
- Não, só saberei o que sempre quis saber e nada mais! Do mesmo jeito que danço, porque deve se dançar e eu o sei, e eu o faço. Você também deveria sabê-lo! Você o sabe, não?
- Sim, o sei, mas não o faço.
- Por que não? É tão fácil!
- Porque tudo sempre para mim foi difícil e sempre um esforço foi necessário.
- Precisa ser conduzido?
- Sim, provavelmente sim – respondi, sabendo a resposta ser não. Não preciso ser conduzido, sempre soube como dançar. Preciso, sim, de uma força para meu esforço e essa sei muito bem como eu mesmo posso gerar, pois sempre a estudei profundamente por toda minha vida consciente. Porém, mesmo assim, nunca pude, nunca tive coragem de fazer de fato à teoria. Logo, naquele momento, não era movido por minha própria força, mas por aquela que encontrava à minha frente, aquela que já naturalmente jorrava dos olhos dela. Jorrando por jorrar e não por ter sido inflamada por uma fonte externa que estivesse à sua frente.
- Mente! E é tão óbvio! Faz como se perdido cada passo da dança, mesmo os sabendo perfeitamente. Fantasia-se de vazio, mesmo não o sendo. Por quê? Por quê, eu pergunto.
- Por quê? Porque apesar de só com a dança se começar, raramente começo por ter medo de não dela passar. Não faço isso constantemente. Faço-o a cada cinco milênios.
- Deveria dançar mais! Só passará da dança, após muitas danças. E mesmo assim, engana-se se pensa que estamos realmente dançando. Damos alguns singelos passos e nada mais. Há tantos níveis de dança que este não é nada.
- Sim, eu sei – e sabia, pois antes, há dezenas de milênios, quando desejava sem realmente saber o porquê, ou o que realmente desejar, antes de descobrir que devia desejar o verdadeiro, dancei. Não dei só singelos passos, dancei uma completa dança. Conduzi e fui conduzido. Cheguei até a me debruçar para o que vinha depois da dança. Mas, não o fiz. Não sabia, não sabia nada e perdi tudo. Quando um nada eu era, tive um caminho livre para o tudo. E agora, quando um tudo eu tento me fazer, só o nada se apresenta. Horrível piada! Terrível piada!
- Nossos singelos passos estão no final – disse parando e se encostando em uma das pilastras, ainda segurando minha mão.
- Sim, eu sei – disse me encostando ao lado dela. – Mas não quer avançar na dança comigo?
- Não, não... – respondeu soltando minha mão. - ...tenho muito a fazer para perder meu tempo tentando despi-lo de sua fantasia. Meu caminho não tem espaço para tais obstáculos! Nossos caminhos só podem se cruzar, quando o seu não tiver mais impedimentos. E até lá, outras diferentes oportunidades, já haverão de ter se apresentado.
- Então, nós nos separamos agora?
- Sim – disse voltando para cadeira. – Pegue sua mochila vazia – disse jogando-a para mim. – Você não tem a mínima razão para estar aqui, volte para rua e continue a andar! – exclamou e sentou na cadeira, virando para frente e não me dando mais atenção.

Ali acabou, pelo menos deveria ter acabado, se eu fosse mais consciente. Pois, apesar de que eu tenha primeiro seguido o seu conselho, dirigindo-me até o elevador para ir embora, quando, na frente deste fiquei, esperando que sua porta se abrisse, um gigantesco “não” começou a pairar em minha mente, me mandando voltar e tentar, tentar o máximo que podia ser tentado, tudo que eu pudesse tentar. Naquele momento, não havia mais controle e eu não podia me ver desistindo daquilo que eu nem realmente tinha alcançado. Logo, voltei. Voltei e pela frente de sua cadeira passei.
- Voltei – disse a ela.
E ela me ignorou, olhou rapidamente para cima, sem cruzar seus olhos com os meus, e depois voltou a olhar para frente, esperando o que quer que fosse começar no palanque, começasse. Assim, sem saber o que fazer, me encostei na mesma pilastra em que antes havíamos encostado, escorreguei-me até o chão e lá fiquei sentado.

Por que eu estava ali? Por que me recusava a aceitar o óbvio? Não sabia e, na verdade, ainda não o sei. Provavelmente, se o mesmo houvesse de se repetir, como a tudo que se repete, faria exatamente o mesmo, e do mesmo jeito, não saberia o porquê. Como ela mesmo havia dito, meu caminho tinha muitos impedimentos para poder cruzar com o dela e nada que eu pudesse fazer naquele estado poderia mudar isso. Mas, mesmo assim, toda a força que se apresentava em meu ser naquele momento era unicamente para tentar, tentar mais uma vez alcançá-la, tentar e tentar, e não para o que era realmente necessário, derrubar minhas barreiras e alterar meu deplorável estado.

Sentado no chão, vi tudo que acontecia ao meu redor. Todos, eventualmente, se sentaram em suas cadeiras e no palanque distante algo começou. Alguém sem muita importância apareceu e começou a falar alguma coisa sobre alguma outra coisa, que eu escutei por alguns segundos até me entediar por completo e desistir. Passei, então, a minha verdadeira e ilícita razão de ali estar, observá-la. Ela sentada na cadeira, olhando fixamente para frente. Assim, me pus a analisar sua seriedade ante aquilo que me fazia dormir. Podia não levar nada daquilo muito a sério, mas levava a sério a sua seriedade e o fato dela levar tudo aquilo tão a sério. E, sobre tudo, não me entediava em nada em observá-la. Sua seriedade era tão sedutora quanto seu sorriso, apesar do último ser sempre o mais gratificante. Mas, apesar disso, não podia continuar. Sentia-me um criminoso. Queria olhá-la, mas queria fazê-lo com seu consentimento, queria que ela quisesse que eu a olha-se. Não queria ser um invasor do seu mundo, queria ser um habitante recém chegado, inebriado pela localidade onde se encontrava. Logo parei de fazê-lo e passei a olhar para frente, para o nada. Dormi.


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